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Metacinemas

Organização: Jane de Almeida
Livro-catálogo da mostra
ISBN 8598100048

Metafiguras
Na minha infância era muito comum as crianças se divertirem trocando figurinhas de álbum. Era delicioso abrir o pacote de figuras e ver aquelas que ainda não tínhamos ou aquelas que eram simplesmente bonitas. Também causava muito orgulho ter aquelas que ninguém tinha: a figurinha difícil. O mais divertido era mesmo o momento de encontrar algum colega que também tinha um álbum e ver as figuras que ele tinha e que eu não tinha, assim como mostrar aquelas que eu tinha para trocar e ele não tinha. Era um exercício de compartilhar aquelas pequenas imagens, mais do que completar o álbum. Selecionar filmes para uma mostra é, antes de tudo, compartilhar filmes. Filmes importantes, inesquecíveis, essenciais que, organizados de forma harmônica, podem ser apresentados a partir de uma narrativa. A narrativa, desta vez, é a metalingüagem no cinema.

No grande álbum de figurinhas que é o cinema existem vários filmes que falam de filmes, de forma mais implícita ou explícita. A mostra Metacinemas selecionou apenas dez desses filmes não com uma razão única do porque desse filme configurar a mostra e não aquele, mas com muitas razões. Afinal, no seu álbum de figurinhas imaginário existem vários filmes que falam de filmes e que certamente poderiam estar aqui. Alguns não estão porque não saíram ainda no pacote, não estavam disponíveis. Mesmo tendo sido procurados com os colegas que também colecionam figurinhas, não foram encontrados e, às vezes, com a terrível desconfiança de que eles devem ter sido queimados ou virado vassouras. Outros porque têm sido figurinhas repetidas, todos nós temos tido acesso a eles com exagerada freqüência, e outros, mesmo tendo sido exibidos com menos freqüência, não entraram, pois nosso tempo de troca é de dez filmes em duas semanas. Alguns não estão porque nenhum de nós acha interessante gastar tempo falando neles, aliás estão no álbum à nossa revelia!

Percebam que essa última frase supõe colecionadores orgulhosos de seu álbum cinematográfico. Orgulhosos por compartilharem um Oito e meio do Fellini ou um Sunset boulevard de Billy Wilder. O preto e branco majestoso, os atores – quem se esqueceria daquele Mastroiani ou daquela Gloria Swanson? –, os diálogos – do primeiro, sutil e indeciso, do segundo, cáustico e mordaz. Certamente Metacinemas é um assunto para quem gosta de filmes de uma forma especial: aquela que supõe a troca intersubjetiva entre filme e receptor. E isso é parte essencial do nosso orgulho, pois nos sentimos incluídos no jogo e o filme só se construirá com a ajuda de nossa percepção intelectual e da nossa memória cinematográfica. Godard é o jogador por excelência desse tipo de proposta: qualquer um de seus filmes é um metacinema. O Desprezo, no entanto, potencializa essa perspectiva apresentando o fazer cinematográfico literalmente e em consonância com a literatura em sua origem narrativa. Fritz Lang dirige a Odisséia. Quem de nós não queria ter visto filmadas as cenas que lemos das viagens de Ulisses? Godard nos adianta a jogada: isso não é possível pois elas seriam cinematograficamente degradadas. O Ulisses de Godard debate-se com a impossibilidade moderna da representação. Assim, é preciso sempre inventar o cinema, lembrando sempre que o cinema é uma invenção dos homens. Essa é a conseqüência intrínseca da metalinguagem quando elabora sobre o fazer cinematográfico: a ética. Em alguns filmes, mais precisamente, a política.

Ainda com pouca idade, o cinema nos anos 20, tem seu grande impulso no movimento em direção à metalinguagem com o cinema de Dziga Vertov, que significa em ucraniano “movimento perpétuo”, pseudônimo escolhido pelo polonês-russo Denis Kaufman. Dziga Vertov, seu irmão operador de câmera Mikhail Kaufman e sua mulher Elisabeta Svilova fundaram o “Conselho dos Três” e lançaram o manifesto “Nós” que reivindicava a autonomia do cinema em relação às outras artes como a música, o teatro e a literatura, e protestavam “contra a mistura das artes que muitos qualificam de síntese”1. Um homem com uma câmera filmava as pessoas, as máquinas, as mais diversas profissões mostrando o dia de uma grande cidade. Poderia ser apenas um documentário experimental se não fosse o revelar do processo cinematográfico desde o início do filme, quando as pessoas chegam ao cinema em que assistirão ao próprio filme. O “cine-olho” (Kino-Glaz) proposto por Vertov, fazia apologia da câmera como instrumento privilegiado de criação de imagem: “eu, cine-olho, crio um homem muito mais perfeito do que aquele criado por Adão” e pela montagem esta criação se completaria. Assim, a linguagem cinematográfica está incluída no próprio processo do filme como um procedimento político. O cine-olho promove o encontro o espectador com sua vida real e não com a imaginária do cinema que se submete a contar uma história, pois os personagens do enredo são pessoas em seu dia-a-dia normal. Não apenas, pois o próprio ato de se deixar revelar o processo do cinema, como no magnífico plano em que se vê nos olhos da montadora as imagens dos fotogramas por ela selecionados, desnaturaliza o truque cinematográfico. São momentos em que o espectador deverá se identificar não com uma imagem longínqua, mas com uma imagem próxima dele mesmo – o que na época era sinônimo de “revolução”. Por seu ímpeto e sua precocidade, Um homem com uma câmera é uma figurinha carimbada.

Metacinemas tem o orgulho de poder compartilhar três figurinhas difíceis: The Big swallow, Filme e Vento do leste. São filmes importantes e que foram vistos apenas em circuitos de pesquisadores e especialistas. The Big swallow é um filme de 1901 e um dos primeiros filmes (se não o primeiro) que tratam do cinema de forma metalingüística. No filme de James Williamson, pertencente à escola de Brighton, o personagem engole a câmera (que é fotográfica) em um plano engenhoso, não antes de colocar o espectador na posição mesma da câmera. Nasce assim um metacinema antropofágico.

Filme é o único filme no qual Samuel Beckett participou escrevendo o roteiro e supervisionando as filmagens dirigidas por Allan Schneider e com a atuação de Buster Keaton. Filme é um experimento teatral e filosófico que questiona os princípios da percepção a partir do olho humano e do olho da câmera. Samuel Beckett partiu dos princípios da filosofia do também irlandês George Berkeley sobre a percepção: Ser é ser percebido. Pode-se conceber três momentos do esquema perceptivo proposto por Beckett: um primeiro em que o ser a ser percebido se encontra em cena externa, o que o expõe diante do outro; um segundo momento em que ele está dentro de um ambiente fechado com apenas uma janela que permitiria a percepção externa deste ser, além do    olhar animal (gato, cachorro, papagaio e peixe), do próprio espelho e de sua memória fotográfica; e um terceiro momento quando a câmera se aproveita do fechar de olhos do personagem para se dirigir a ele. É um momento especial pois, atônito, ele se depara consigo mesmo, ou seja, revela-se percepção dupla de si diante do outro.2  Para a surpresa de Beckett o diretor de fotografia era Boris Kaufman, o irmão mais jovem de Dziga Vertov que já havia trabalhado com Jean Vigo (O Atalante e Zero de conduta) e Elia Kazan (Clamor do sexo e Sindicato de ladrões)

Vento do leste traz novamente a alcunha “Dziga Vertov”. Nos anos sessenta, Godard se reúne com um grupo de esquerdistas que se propunham a fazer filmes sob o nome de “grupo Dziga Vertov” para fundar um cinema cuja filmagem seria em si uma prática política e colaborativa que marcasse uma diferença não só com Hollywood, mas também com a tradição cinematográfica eisensteiniana3. Vento do leste é o terceiro filme do grupo de uma série de seis, British sounds, Pravda, Lotte in Italia, Vladimir et Rosa e Jusqu’à la victoire, e vai inaugurar uma parceria com Jean-Pierre Gorin com quem fará ainda dois filmes, Tout va bien e Letter to Jane, agora sem a marca “Dziga Vertov”. Esses filmes foram chamados de “filmes invisíveis”4  de Godard, dada a dificuldade de serem exibidos e certamente de serem vistos, pois é exigido do espectador não apenas a disposição para o jogo de referências, mas também a afiliação às crenças revolucionárias da época que hoje podem parecer simpáticas, mas também idealistas e um tanto quanto pretensiosas no que diz respeito ao que se imagina ser “o melhor para o povo”. De qualquer forma, as experiências sobre a linguagem cinematográficas são ousadas e provenientes de um sofisticado diálogo com a tradição cinematográfica e visual. Propõe a desconstrução do modelo de representação espacial da perspectiva tomada do Renascimento. Vento do leste deveria ser um faroeste “espaguete” feito na Itália, a partir de uma sugestão de Daniel Cohn-Bendit, intelectual e ativista das agitações esquerdistas francesas do fim dos anos sessenta, que também assina o roteiro. A idéia central da trama partiria de uma greve em uma mina, mas o filme se desenvolve de forma entrópica com momentos iluminados. Um deles é especialmente emocionante para o espectador brasileiro que pode assistir a uma pequena participação de Glauber Rocha5 em uma encruzilhada respondendo a uma questão crucial para o cinema: qual é o caminho do cinema político? Ele então aponta vários, dentre eles o “caminho do cinema perigoso, divino e maravilhoso” que é o do terceiro mundo. Caberia agora perguntar se nós o temos perdido...

Dois filmes são mais recentes e falam do cinema de forma delicada. François Truffaut dirige a si mesmo em A Noite americana e, com o encantamento que lhe é próprio, faz uma declaração de amor ao cinema. O filme de Mohsen Makhmalbaf, Um instante de inocência, é apenas um dos exemplares de um cinema que deve muito de seu sucesso ao procedimento metalinguístico, pois tem produzido vários filmes que falam de filmes ou mesmo introduzido o elementos das filmagens dentro dos filmes. O último filme, Um olhar a cada dia de Theo Angelopoulos, um seguidor dos procedimentos brechtianos, também busca a origem do olhar cinematográfico na Odisséia e leva seu Ulisses a uma viagem desesperada, à procura de um cinema que ainda virgem pudesse restituir aos gregos uma identidade fragmentada em guerras e línguas na região dos Balcãs. O olhar de Ulisses introduz a câmera no filme de uma forma silenciosa, mas precisa, marcando o tempo entre personagens que nunca conviveram. A partir daí todo o percurso do personagem cineasta será seguido pela realidade ciclope da câmera.

Jane de Almeida
curadora

1. Manifesto “Nós” publicado na revista Kinofot, no. 1 em 1922. Em Dziga Vertov. De Vasco Granja. Lisboa, Livros  Horizonte, 1981.

2. Gilles Deleuze escreve sobre Film de Beckett argumentando sobre a Imagem-Movimento e chama esses três momentos de “imagem-ação”, “imagem-percepção” e “imagem-afecção” a partir dos movimentos da câmera e dos movimentos perceptivos do personagem como a “percepção de ação”, “percepção da percepção” e a “percepção de si para si”. Em L’Image-mouviment. Volume I. Paris, Les Editions de minuit, 1983. Pp. 97-100.

3. Sobre o trabalho colaborativo e os propósitos políticos do grupos Dziga Vertov, ver Godard: Images, sounds, politics. De Colin MacCabe. London and Basingstoke, The Macmillian Press Ltd., 1980.

4. João Lopes. Jean-Luc Godard. Edição da cinemateca portuguesa. Lisboa, Gráfica Brás Monteiro, 1985. Pp. 289-290.

5. Ismail Xavier relata a discussão entre Glauber e Godard na ocasião da filmagem de Vento do Leste. Godard teria acusado Glauber de haver se conciliado com o “conceito burguês de representação” e Glauber, por sua vez, sugere que a preocupação demasiada com desconstrução da linguagem cinematográfica levaria a uma “especulação filosófica sem saída”. Xavier argumenta que a diferença entre os dois modelos de desconstrução da identificação cinematográfica são provenientes de contextos diferentes. Em O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2ª. Ed. Rio de Janeiro, Terra e Paz, 1984. Pp.142-143.

Jane de Almeida
curadora

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