<
os fins dos meios >
Cicero Inacio
da Silva
A digitalização
tem configurado uma série de análises sobre o texto, a autoria
e a obra na contemporaneidade. Muito se disse sobre o impacto que as informações
geradas e depositadas em sistemas computacionais conectados em rede operaram
sobre a nossa cultura.
Nesse sentido, o caminho de analisar estes acontecimentos para tentar
estabelecer um evento pode ser considerado uma retomada de uma discussão
que foi sendo perdida ao longo do debate sobre a digitalização
e, principalmente, sobre as linguagens que foram surgindo nestes meios
eletrônicos que manipulam dados digitalizados e processam informações
lógicas entre paridades numéricas reduzidas a 0’s
e 1’s.
O que pode ser lido como perda, no sentido ao qual faço alusão,
é o de termos nos dedicado a pensar o meio digital, suas características
e sua, se quisermos nos adiantar bastante, identidade, a partir de características
fenomenológicas advindas de descontextualizações
bastante gritantes e que, geralmente, estão associadas a práticas
que pertencem aos meios (para não dizer linguagens) análogos
aos hoje existentes.
A grande maioria dos usuários das linguagens digitais, que operam
por vias eletrônicas, bem sabem que as características manifestas
desses espaços não condizem mais com as definições
que tínhamos até então, tanto sobre o espaço,
quanto sobre a escrita.
A digitalização, além de não poder mais ser
lida como um evento que se resume a um suporte, é ela mesma um
fator que desloca as possibilidades de estabelecer o que conhecemos como
“um meio de comunicação”.
Ou seja, com as linguagens digitais, temos uma radicalização
contrária ao movimento que reduzia tudo à comunicação
de alguma coisa, e voltamos à exacerbação de que
tudo voltará a ser escritura, e que estas escrituras que surgirem
terão espaço para existir, sem seu cerceamento e, muito
menos, sem sua condenação antecipada. Em outras palavras,
não haverá mais espaço para discursos comunicantes
homogêneos e nem signos baseados em pressupostos estáticos.
Muito provavelmente, o que antes conhecíamos como “suporte”
ou “meio”, não fará mais sentido numa cultura
que materialmente se descola das referências estáticas estruturais.
As informações, a linguagem, a escrita, a telecomunicação,
entre outras questões, abrirão cada vez mais um espaço
sem ligação com as teorias que se julgavam tributárias
do “sentido” e da transmissão das coisas (como no estruturalismo,
por exemplo).
A partir do momento em que surgiram as possibilidades de envio de informações
através de suportes que operavam à distância, como
o telégrafo, por exemplo, muitas questões poderiam ser antecipadas,
como em alguns casos o foram, em relação às transformações
nas linguagens, na escrita e na recepção. Se com métodos
rudimentares de envio de signos uma série de possibilidades foi
aberta, atualmente, com as redes e com a digitalização desmaterializada
via informática, essas transmigrações foram exacerbadas
ao extremo.
No entanto, convém observar que uma série de análises
que tentam dar conta de compreender o fenômeno atual da digitalização
em massa das informações via sistemas eletrônicos
não parte do próprio sistema (linguagem) em questão.
Ou seja, a grande maioria dos textos sobre o assunto ainda estão
pautados sob a lógica da emissão e da recepção,
da comunicação e da transmissão de sentido, da informação
que pode ser congelada e transmitida etc. O meio ainda é, para
esses teóricos, algo inocente que carrega e transporta (e o uso
desses significantes não é acidental) o que se quer dizer.
A comunicação, nesse sentido, passa ainda a ser a pauta
e o marco regulatório das análises que tentam entender os
processos sígnicos de linguagem que operam nos sistemas digitais.
A digitalização permite pensar que a comunicação
tenha se deslocado para outra instância.
E que instância seria essa, se a própria palavra “comunicação”
somente comunica algo para alguém quando ela adquire, na presença
desse ouvinte ou leitor, um sentido? Ou seja, antecipa-se o que ela quer
dizer, para depois em nome dela elaborarmos um discurso.
Por isso, é muito comum vermos uma série de pesquisadores
que se debruçavam sobre teorias da emissão e da recepção
cometerem equívocos bastante constrangedores ao analisarem os meios
digitais de produção de linguagens escriturais. Primeiro
porque acreditam seriamente que estas linguagens não interferem
em nada no processo de significação, ou melhor, que elas
seriam somente meras mediações que carregariam consigo as
condições de legibilidade das informações
codificadas. Em segundo lugar, porque ainda estão presos aos sistemas
estruturais que solidificam e deletam obrigatoriamente os parasitismos
e as iterações dos discursos, mesmo digitalizados, para
fazer circular o que acreditam piamente ser uma informação
“pura”, livre de todo constrangimento do “ordinário”,
carregando por suas vias a mais verdadeira verdade. E essa verdade estaria
centrada dentro do significado que o significante carregaria para todos
os lados. Adiantando-me para não ocupar espaço e nem seu
tempo: o sujeito que se pauta na lógica da comunicação
acredita, faz uma fé cega, quase religiosa, que pode dizer que
sabe que sabe; antecipa-se de maneira autoritária e transgressora
sobre toda a escritura e faz dela o seu objeto de gozo, de prazer, quase
como um meio de fazer com que o Outro goze a partir do seu delírio.
Ou seja, diz o que o outro deve entender do e no que está escrito
nas palavras. É, resumindo, a base da lógica hermenêutica
que irrompe e ao mesmo tempo se delata nesse ato de incesto cometido contra
as escrituras que não se deixam levar por estes discursos canhestros.
Nesse sentido, convém adotar uma postura de observação
atenta para com os movimentos que analisam as formas e que se prendem
aos detalhes dos sentidos, dos querer-dizer que se fazem presentes nas
afirmações mais rígidas dos vigilantes (aproveitando
a polissemia do termo) dos significados dos significantes.
Rígidos, solipsistas e constrangedores, os conceitos fechados das
teorias da interpretação que se dizem verdadeiras formaram,
durante muito tempo, toda uma tradição de pensadores. A
própria concepção teórica de existir uma possibilidade
de algo ser informado, ou mesmo comunicado, só foi possível
depois de uma série de rígidas normas que solidificaram
toda uma tradição e que deram garantias aos detendores do
saber que sabe de se sobreporem, até institucionalmente, aos parasitismos
e desvios dos discursos e comunicações estruturadas nas
e pelas normas.
Partindo dessas conclusões, proponho uma outra condição
para os resultados que essa cultura da desmaterialização,
da desestabilização, da disseminação, trouxe
às nossas mais arraigadas manifestações como sujeitos:
a impossibilidade de algo ser tomado como meio.
Quando surgiram as mais variadas formas de objetos que continham e que
apresentavam fenomenologicamente uma imagem e um som (a TV por exemplo),
fomos tomados por uma idéia, colada na ordem anterior (a da escrita),
de que aquilo que ouvíamos ou que olhávamos, nada mais era
do que somente um “suporte” para toda uma série de
coisas que produziriam sentidos. E que estes sentidos seriam produzidos
no início de tudo, ou seja, na própria “mensagem”
que seria transmitida.
A partir desse momento, a associação (para não dizer
apropriação) com a lógica da escrita é gritante
e, por mais infeliz que seja, continua valendo até hoje. Nesse
processo, ficou soterrada toda uma análise do sujeito diante do
dispositivo que emitia o som e a imagem. Esse momento que poderia ser
lido como uma mudança radical na cultura, introduzindo novos elementos
dentro do espaço do indivíduo e modificando essa forma de
ver o próprio espaço através de uma maneira identificatória,
foi subtraída pelos discursos que eram vigentes (volto a insistir:
a lógica da escrita) através, principalmente, de McLuhan.
Ele, ao tentar propor o signo como representante de si mesmo, remete mais
uma vez à construção da metáfora como síntese
do sentido e, nesse intervalo, deixou a impressão de que a identificação
do sujeito não se dá por uma linguagem, e sim por uma representação
que dela podemos ter. O equívoco consistiu em creditar seus signos
como objetos de sentido, e, assim sendo, não mais viu (no sentido
perceptivo, e não visual) que toda a sua concepção
escritural trouxe consigo a noção de presença a si
de uma mensagem, descolando o meio do que seria meramente a comunicação
como um efeito, e nada mais, de uma cultura centrada na palavra (logos).
A comunicação, diante da ruptura que foi inserida na cultura
pela disseminação da escrita desmaterializada, não
será mais vista como vinha sendo até então.
O que antes era conhecido como “meio” e “mensagem”
foi tragado (novamente insisto na polissemia do termo: um cigarro pode
ser tragado, uma embarcação em alto mar pode ser tragada
por uma onda etc.) pelo que se convencionou denominar linguagem. O que
poderíamos pensar como sendo transmissão, passou a ser processo,
e o que antes poderia ser lido como interpretação, passou
a ser apropriação do Outro, em todos os sentidos. Comunicar-se
hoje é não mais se ater às inúmeras tentativas
semânticas presas aos significantes. Passou a ser, se assim quisermos,
o fato de observar que a possibilidade do Outro existir reside exatamente
na impossibilidade de haver e de existir um meio, uma comunicação
e uma antecipação do que quer que seja.
Se houver anterioridade, haverá subordinação, e se
houver subordinação, haverá uma construção
imaginária idealizada do Outro. Resumindo: eu aniquilo toda a possibilidade
de haver ou de surgir outras formas de escritura assim que denomino que
algo é “comunicável” dentro de um protocolo
de emissão e de recepção.
Haverá outra possibilidade de conseguir compreender para além
dessas restritas à uma cultura impressa, ligada geralmente à
escrita e transposta para todas as formas de transmissão de informações?
Ao observar que já existem trabalhos que percebem, mesmo sutilmente,
que cada vez mais surgirão escrituras, e que serão estas
escrituras que manifestarão as dinâmicas da compreensão
(falo aqui dos trabalhos de Giselle Beiguelman, destacando a obra intitulada
Poétrica), minha aposta é que sim.
A comunicação por e pelos meios é algo para ser analisado
e visto como a pedra fundadora do logocentrismo, e como não deveria
deixar de ser, continuar operando sob essa lógica da escrita diante
da disseminação parasitária das escrituras que a
cada dia surge, é insistir na institucionalização
e no aniquilamento da diferença que se manifesta, incessantemente,
no Real, como diria Lacan, do impossível.
O inantecipável abrupto rompe com a hipótese de haver um
meio sólido de transmissão. As escrituras efêmeras
operam exatamente nestas rupturas e caminham em direção
à possibilidade de termos as mais variadas formas de diferença
expressas sem serem antes vistas e observadas pelos seus contextos (políticos,
econômicos, sociais e institucionais) e sem serem direcionadas por
alguém que queira manipular o pensar para uma só interpretação,
como ainda fazem a maioria das instituições de ensino e
de pesquisa, infelizmente com raras exceções.
O universo (remeto ao sentido de conjunto) da digitalização
desloca e impossibilita a tradição da comunicação
(e, como nos diz Derrida, temos de tomar muito cuidado com essa palavra)
e a coloca diante de um impasse, talvez sem resolução, a
não ser abandonando-a conceitualmente a longo prazo e a localizando
(para não ir tão rápido e propor sua substituição
e deslocamento pelo significante escritura) no interior do conceito de
escritura.
Pensar numa forma de cultura que se aproprie da idéia de que é
indecidível a concepção de um traço originário,
é marcar um espaço de diferença radical, que, antecipo
aqui, pode ser pensada com a digitalização da escritura.
Tentar construir uma cultura que se intitule, nesse sentido, digital,
ressoa como contraditório, visto que o próprio conceito
de cultura, em certo sentido, é ainda preso aos traços supostamente
físicos e legíveis (como os da história) de uma hipótese
substancialmente vinculada à presença.
Portanto, as linguagens digitais operam outras vertentes e não
se ligam mais aos pressupostos conceituais anteriormente decodificados,
tais como cultura, interpretação, escrita e “deixar
para esse novo conceito o velho nome de escrita é manter a estrutura
de enxerto, a passagem e a aderência indispensável a uma
intervenção efetiva no campo histórico constituído.
É dar tudo o que se representa, nas operações de
desconstrução, a oportunidade e a força, o poder
de comunicação (...) a escrita, se existe, talvez comunique,
mas não existe certamente.” (Derrida, 1971).
Ricardo
Barreto e Paula Perissinotto (orgs.)
São Paulo, IMESP, 2004.
ISBN 85-89730-02-6
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